quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Minha Esfinge...

“Você é minha esfinge!”, disse um amigo à ela, tamanho era seu mistério. E, para ela, não havia outra definição que pudesse defini-la melhor: um enigma nunca antes desvendado, tal como a esfinge de Édipo. Reclinada em sua poltrona, ela recebia essa mensagem com a estranha sensação de resignação, como se ainda não tivesse nascido ainda alguém que pudesse compreendê-la. Ela era o maior desafio para terapeutas, amigos e, sobretudo, para ela mesma.

Não que ela fosse a pessoa mais complicada do mundo, longe disso. Também não era a pessoa com mais problemas do que as outras, embora tivesse seus dramas. Não tinha um gênio indomável, tampouco era fria:. Não pecava pelos excessos, pelo contrário: sua fala é mansa, suave, quase que embalando uma melodia, embora se esconda um vulcão, um tsunami. Por trás dos seus olhos serenos e seu sorriso contagiante, encontravam-se terremotos, maremotos e chuvas torrenciais. Talvez esse fosse justamente o problema: só ela sabia dessa ambigüidade, mas se continha a tal ponto que até ela, por vezes, se esquecia do que ela era.

Talvez ela possuísse uma imagem parcial, incompleta, de si mesma e se assustava sempre que os seus outros lados, como aquele mais obscuro e o mais impulsivo, apareciam. E eles sempre aparecem, pois a natureza sempre põe à tona aquilo que tentamos esconder de nós mesmo, não importa como. E como ninguém gosta de viver de sobressaltos, ela se protegeria a sua maneira: uns diziam que ela se fechava em uma concha, outros diziam que ela colocava dezenas, centenas de camadas a sua volta, assim como uma cebola.
 
Todos nós temos diversos “lados”, facetas. Não seria exclusividade só dela. Todavia, há formas e formas de revelá-los. Alguns simplesmente deixam essas facetas fluírem naturalmente, sem controle prévio ou censura. Impulsivos, por mais organizados que sejam cada minuto é uma grande surpresa pra eles: não se sabe como irão reagir a um gesto, uma palavra, um olhar do outro ou de si mesmo. Outros, por sua vez, controlam cada passo que irão dar: está tudo arquitetado, evitam o improviso que a impulsividade obriga a ter. Cada palavra dita é proferida devidamente pensada e repensada, cada gesto é filtrado e não foge a seu controle. Mas como a natureza sempre põe à tona aquilo que tentamos conter, sempre que se há um lapso e ela se escapole de sua concha, sempre que percebe que a cebola sendo descascada muito rápida ou profundamente, ela se fecha cada vez mais, seja em uma concha mais resistente, seja em uma cebola com mais camada.

Mas não seria o fluxo da vida abundante demais para se passar por um eterno e rigoroso controle? Tentar viver em um casulo é como controlar um vazamento com chiclete: uma hora não vai segurar mais, vai arrebentar. E a vida pode ficar tão mais divertida, tão mais colorida quando deixamos o impulsivismo aparecer em nossas vidas: quando falamos aquilo que queremos falar, que digamos bobagem, quando agimos passionalmente mesmo que depois fiquemos vermelhos de vergonha do que fizemos. Que nos apaixonemos e desapaixonemos. Quando agimos antes de pensar, quando não pensamos nas conseqüências. Enfim, não é ser irresponsável, é ser humano, é ter vida. E Talvez ela saiba disso: há uma certeza quase geral de que nem o melhor dos psicólogos vai dizer alguma coisa sobre ela que ela já não saiba. Mas, assim mesmo, ela continua sendo um desafio para si e para os outros: qual a razão para tanto domínio de ímpeto? Seria medo de ser feliz de uma forma diferente do que passou a vida planejando? Desfazer os castelos de areia da alma é tão doloroso quanto perder parte do corpo, e nem todos estão preparados para isso.
 
Só aqueles olhos calmos que escondem uma grande ressaca do mar seriam tão mais belos se permitissem que fôssemos engolidos por suas gigantes ondas. Que aquela fala carinhosa que acalma o seu ouvinte também se permitisse queimá-lo com as lavas do seu Vulcão. Que a mão que acalenta se permitisse colocá-lo no meio de um terremoto. Mas para ela pode ser que seja mais forte que ela desviar-se do assunto quando ele vai entrar em uma área onde ela não tem total controle. Ou que é mais forte que ela desconfiar de alguém que apenas quer conhecê-la, pois não existe amizade sem conhecimento do outro. Talvez, para ela, perceber que no meio de uma conversa, o outro está perto de si mesma, em uma área perigosíssima, a do seu eu desprotegido, ambíguo, sem máscaras, é tão assustador que a faz usar qualquer arma para despistar, fugindo logo em seguida. Talvez, quando ela sai da conversa, foge não por ser covarde, mas porque não se sente confortável para se abrir para o outro. Mas como se sentir confortável quando não se abre espaço? Embora sempre risonha, fazê-la sorrir aquele sorriso verdadeiro, de dentro pra fora, aquele que mostra a janela secreta da alma, seja para muitos dos seus queridos uma vitória.

Mas, apesar de tudo, é justamente nesse ser contido que se guarda um charme, algo que atrai as pessoas a quererem conhecê-la melhor. Arrasta-nos para uma grande areia movediça, prendendo ali eternamente sem nunca ter certeza completa de que a realmente conhece. Talvez este seja o segredo dessa esfinge pós-moderna: descobrir uma senha que nos livre dessa incontrolável compulsão em desvendá-la ou que a faça sair de sua concha ultra-resistente. Por mais que seja meio exagerado dizer que ainda não nasceu um Édipo para desvendar esse enigma, o fato é que ainda não ele não foi encontrado. Esse ar misterioso, contido, pode ser justamente uma escolha dela, que permitirá a apenas a alguns privilegiados, que possuindo a resposta do seu enigma, tem as chaves de seu coração e mente. Que por trás daquela fachada quieta e serena, existia uma intensidade explícita em seu viver. Ou será que sua intensidade esta circunscrita aos suas loucuras secretas? Daria pra viver certas loucuras de vez em quando sem necessariamente romper as barreiras do seu casulo? Enquanto isso não acontecia, ela poderia estar se deliciando em devorar meros mortais extremamente curiosos em desvendá-la, bagunçando suas cabeças metidas a analistas freudianos.
 
Depois de sua resignação inicial, e reorganizando seus pensamentos, ela, com um sorriso no canto na boca, fala para uma confidente e surda tela: “É, talvez eu seja uma esfinge! Decifra-me ou te devoro!”.

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