terça-feira, 6 de julho de 2010

Comprimidos...


O quarto é escuro e bolorento...


T está encostado junto a um sofá roto, deitado no chão a segurar uma folha de jornal rasgada... olha para a janela suja e fria, por onde a luz dos candeeiros cria sombras fugazes...levanta-se, vagarosamente e fecha a cortina rasgada...um pouco de claridade da lua ainda entra no quarto, iluminando uma pequena mesa com um telefone...

T senta-se,pesado, no sofá e pega no telefone...marca, lentamente, um número...


T: Tou...sou eu...queria ouvir a tua voz...

...

T: Eu sei...estou bem...não, não me esqueço de tomar os comprimidos...

...

T: Sinto-me só...tenho saudades tuas...quando chegas?

...

T: Não, não me esqueço de tomar os compridos...gosto de ouvir a tua voz de mel...

...

T: Sinto a falta do teu toque de veludo...queria tanto que estivesses aqui...

...

T: Queria que me afagasses o cabelo...passasses os dedos longos pelo meu rosto aspero...

...

T: Porque que demoras tanto? Não vens?

...

T: Não...não me esqueço dos comprimidos...trazes os miudos?

...

T: Gosto do barulho que fazem, da alegria que dão...

...

T: Olha, precisamos de falar mais...preciso de conselhos, da tua sabedoria...as pessoas, os idiotas, magoam-me, ferem-me, arranham-me...

...

T: É, dizem-me coisas impossíveis, só para serem más...queriam fazer-me mal...querem que seja infeliz...

...

T: Não, não me esqueço do tomar os comprimidos...as pessoas queriam que eu tomasse mais, mas eu não tomo...más...estúpidas...todas sem um pingo de amor...invejosas...

...

T: São estúpidas... não sei...quando vens para tomar conta de mim?

...

T: Preciso tanto de ti...do teu sorriso de cristal...não vens?

...

T: Sabes aquela foto tua na neve? Perdi-a...queimei-a...queimei todas...por causa das pessoas más e das coisas ignorantes e sem sentido que dizem...Teve de ser...não fiques chateada...anda...vem...

...

T: Mas tenho a tua foto e a dos miúdos aqui na minha mão...mas queria-vos aqui...a foto não chega...

...

T: Fotos também são ilusões...o teu toque é real...anda...anda ter comigo...acaba com a minha solidão...

...

T: Não, não me esqueço de tomar os comprimidos...estou cansado...espero por ti deitado, pode ser?

...

T: Fome...fome só de ti e do teu toque..anda...estou cansado...anda...

...

T: Volta para mim, meu amor...

T deixa cair o telefone e levanta-se, sonolento, embriagado, tosco, comatoso...caem os compridos ao chão e espalham-se pelo tapete sujo e poeirento...

T recolhe-se numa manta junto ao chão e adormece... da mão cai-lhe um recorte de jornal rasgado, com uma foto de uma rapariga e de duas crianças...o titulo, iluminado pelo luar..."Jovem e dois filhos morrem em trágico acidente de viação"...

O telefone, fora do descanso, repete, vez após vez... "após o sinal...serão duas horas e quarenta e três minutos...beep, beep...

(Autor Desconhecido)

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